quinta-feira, 7 de março de 2019

Doa a quem doer.

04.01.2012: Respectivo e eu morávamos em São Paulo, mas estávamos passando o final de ano em Floripa. Tínhamos acabado de ganhar um baita presente, minha irmã havia anunciado na ceia de Natal que estava grávida. Só que a nossa felicidade não durou muito. Menos de 10 dias depois do anúncio, ela sofreu um aborto espontâneo. Estávamos hospedados na casa dela e vivemos bem de perto aquele momento de dor. No dia seguinte ao procedimento que levou embora meu primeiro sobrinho(a), meu cunhado precisou sair para resolver burocracias do plano de saúde. Como era de manhã cedo e minha irmã dormia, ele me pediu para que eu ficasse no quarto com ela, para não correr o risco dela estar sozinha quando acordasse. Dito e feito. Passado algum tempo que eu estava lá - tempo esse que eu passei tentando pensar no que dizer para uma pessoa no auge da sua dor - ela acordou. Me olhou. Era visível em seus olhos vermelhos e inchados a profundidade da dor que ela estava sentindo. Eu nunca esqueci a expressão que vi em seu rosto. Desse olhar sofrido imediatamente brotaram grossas lágrimas e ela me estendeu os braços. Abracei-a e fiquei ali, em silêncio, sem saber o que dizer. Mas nada me vinha à mente. Apenas me mantive abraçada a ela, me sentindo o mais desprezível dos seres por não saber como consolar minha própria irmã.

02.03.2019: Sábado de carnaval. Eu e respectivo resolvemos dar uma volta num bloco de rua com alguns amigos, levando a pequena com a gente. O pequeno ficou em casa com a vó, o agito do lugar era um pouco demais para ele. Lá pelas tantas, no meio de uma brincadeira de corre-corre, a pequena caiu e ralou o joelho. Seu rostinho se contraiu em dor e eu imediatamente corri para ela. Levantei-a no meu colo, abracei e perguntei se havia machucado e onde estava doendo. É um ritual que faço toda vez que ela se machuca. Enquanto eu seguia com o meu protocolo, ouvi uma voz dizer: "não foi nada, continua continua."

Tenho pensado muito sobre a dor ultimamente. Não é para menos, afinal ela se tornou uma companheira inseparável nos últimos anos. Mais do que isso, a dor acabou se tornando para mim uma grande amiga, uma incomparável mestra que, de vez em quando, se aproxima um pouco mais e me convida a refletir. Fiquei pensando nessa cena do carnaval desde que ela aconteceu. E fiquei com uma forte impressão de que fazemos isso o tempo inteiro. Não só com crianças pequenas, mas com tudo e com todos. "Vai passar. Vai parar de doer. Não foi nada. Não precisa chorar. Você precisa ser forte. O tempo cura. Vida que segue. Daqui a pouco você esquece. Daqui a pouco você encontra outro amor. Daqui a pouco você engravida de novo." 
Li esses tempos um texto sobre luto muito lindo, que eu acabei inclusive compartilhando com a irmã do início do post. O texto falava dessa sensação incômoda, quando se perde algo ou alguém, que o mundo deveria parar junto com a sua dor. Essa sensação de que é injusto a vida seguir em frente como se nada tivesse acontecido, quando dentro de você não existe nada além de dor. Por que será que o mundo lá fora não consegue perceber que, apesar dele seguir girando, você precisa parar e chorar por um instante? Dizem que os fortes não choram. E se isso for verdade, eu sou uma das pessoas mais fracas do mundo. Porque chorar sempre foi algo que eu adorei fazer. Engolir choro definitivamente não é comigo. Não me entendam mal, não gosto de sofrer. Mas quando eu sofro por qualquer coisa que seja, sinto que chorar é o caminho que me faz mais rapidamente aliviar aquela dor. Deixar sentir, deixar caírem as lágrimas até os olhos arderem e a respiração dividir espaço com os soluços. A sensação que vem depois, sempre é de alívio, leveza. 
Alguns meses atrás eu conversei com a minha irmã sobre o episódio que contei lá no início. Do quanto eu me senti mal por não encontrar palavras para tentar confortá-la. E o que ela me respondeu, me redimiu de anos de remorso: "você me deu exatamente o que eu precisava naquele momento, um abraço." Por que sentimos essa ânsia tão grande de consolar o inconsolável, quando tudo que deveríamos fazer é apenas estar junto e se permitir sentir um pouquinho a dor do outro? A dor, quando compartilhada, estreita os laços do amor. Mostrar que a dor do outro dói na gente também, é elevar o sentido da palavra compreensão à milésima potência. Ah se eu conseguisse quantificar todo o amor eu recebi nesses últimos anos nos instantes em que alguém simplesmente me abraçou e chorou junto comigo. Ah se eu conseguisse traduzir em palavras esses tantos abraços apertados e pudesse agradecer a cada um desses que aliviaram minha dor ao chorar por mim um pouquinho das minhas lágrimas. Ah se eu pudesse retribuir cada abraço, cada lágrima, com mil outros abraços e lágrimas de mil outras pessoas que choram por aí...
Não há nada mais humano do que sentir dor. Jesus se fez mais homem quando se deixou sentir a dor do Calvário. Quando chorou pelo amigo Lázaro, mesmo sabendo que dali a dois minutos iria ressuscitá-lo. A dor se tornou uma constante na minha vida desde o acidente. Há fé, sim. Há esperança, sim. Há gratidão, sim. Há paz, sim. Há amor, definitivamente. Mas há dor. Não tem como não haver. E eu não só aprendi a andar lado a lado com ela, como aprendi a nutrir um profundo respeito por ela. Afinal esses pouco mais de dois anos de convivência com sua presença me fizeram amadurecer e transformar infinitamente mais do que 30 e poucos anos de vida. Fez com que eu me conhecesse melhor, com que eu buscasse reconhecer aquilo que me causa dor e aquilo que eu provoco de dor nos outros. Me despertou e sensibilizou para a dor alheia, me fez querer sair de mim mesma para poder fazer algo por quem sente o mesmo ou algo parecido com o que eu sinto. Me fez reconhecer minha pequenez diante de Deus, me entregar em Suas mãos e descobrir quão profundamente amados nós somos. Me fez fixar os olhos no alto e almejar o Céu com tanto afinco que pela primeira vez eu me senti impelida a tentar superar a mim mesma em tudo aquilo que me afasta de Lá. Me fez entender que a dor não é esse monstro do qual tentamos fugir a todo custo, que para ela deixar de ser vilã basta nos permitirmos senti-la de mãos dadas com Aquele que transformou as piores dores desse mundo no maior ato de Amor.
Esses dias, a pequena estava tendo um acesso de birra. Eu tentava acalmá-la explicando que ela não precisava reagir daquele jeito diante daquela situação. E aí ela, tão pequena e tão sábia, me responde: "Eu PRECISO chorar, mamãe". Parei por um momento. Sem saber como contra-argumentar, apenas respondi: "Então me abraça, porque chorar abraçado é bem mais gostoso." Ela me abraçou. Menos de 10 segundos depois, soltou aquela risadinha que só criança sabe dar. Aquela risada ao mesmo tempo aguda e suave, que é capaz de fazer a própria dor sorrir, ainda que os olhos estejam embaçados de tantas lágrimas.

3 comentários:

  1. Manu, nós não nos conhecemos, fiquei sabendo da sua história e a do Arthur por acaso no Facebook e fiquei muito sensibilizada. Depois vim a descobrir algumas coincidências nos nossos caminhos, como vc ter morado em Jaraguá do Sul (morei lá por 10 anos) e agora com estas palavras, que me tocaram profundamente por ter passado por duas vezes pela mesma dor da sua irmã e que eu jamais encontraria palavras melhores para descrever. Além do mais coincidentemente hoje tive a notícia de que uma querida amiga também sofreu um aborto e a minha mensagem a ela foi no mesmo sentido, não direi nada pq sei que nada, nada mesmo que eu dissesse adiantaria algo pela dor que ela está passando, mas que se sentisse abraçada. Obrigada pelas palavras e demonstração de fé. Fique com Deus. Milly

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  2. Sys querida! Não sabes o que teu abraço e silêncio fizeram em meu coração naquela manhã de dor!!! Me encontraste no silêncio e me deste espaço para chorar e sentir!!!! Certa vez li de Dante Alighiere: “quem conhece a dor, conhece tudo”. E hoje vejo o quanto a dor tem te mostrado deste Tudo! E o quanto queres abraçar este Tudo! Nada pode nos tirar esta dor... mas Nele, tudo ganha novo sentido... e mesmo a dor ganha espaço em nós!
    Te amo!!!! Saudades do teu abraço, e de te abraçar!!!!

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  3. Querida mil desculpas pela demora em responder!!! Fiquei muito emocionada com o seu comentário, obrigada de coração pelo carinho!!

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